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De peito aberto


Era uma terça-feira, não era um dia qualquer pra mim. O sol ainda não havia chegado, mas a minha ansiedade estava reluzente. Cheguei ao hospital às 5:43 da manhã. Era um misto de medo e esperança, e o coração prestes a sair pela boca.

No dia 5 de setembro, fui submetido a uma cirurgia no coração. O procedimento (aberto), inevitável para me livrar de um aneurisma na aorta ascendente do coração, aconteceu no John Muir Medical Center, em Concord, Califórnia.

A cirurgia foi um sucesso, e o processo de recuperação segue bem, dentro da normalidade. Já estou em casa, após cinco dias hospitalizado. Comandada pelo cirurgião-chefe Murali Dharan, a equipe foi impecável antes, durante e depois da cirurgia. 

Ah, é importante voltar alguns anos no tempo pra contar melhor essa história. Descobri o aneurisma em João Pessoa, em 2012, ao fazer exames de rotina. Na época, a cirurgia não era necessária porque o tamanho da dilatação era pequeno. 

Durante cinco anos, fui acompanhado pelos médicos Antonio Carlos Cavalcanti e Maurilio Onofre Deininger. O diagnóstico e os cuidados feitos no Brasil foram precisos e exitosos. Mas, com o passar dos anos, o aneurisma cresceu e chegou ao limite da margem de segurança – too big. O crescimento era algo que provavelmente aconteceria com o tempo. E foi o que aconteceu.

Em exames realizados em julho deste ano, na Califórnia, confirmou-se a previsão dos médicos brasileiros, e a cirurgia dessa vez passou a ser inevitável. O susto foi grande quando recebi a informação, apesar de ter convivido com esse fantasma nos últimos 11 anos, mas era preciso encarar o monstro de peito aberto – metaforicamente e literalmente. E assim foi feito.

Antes da cirurgia ser feita, vivi um duelo cerebral. De um lado, cheio de razão, o hemisfério esquerdo – racional, analítico, matemático – me dizia: “Calma, Allysson, a cirurgia é de grande porte, mas é de baixíssimo risco, apenas 3%. E como você é jovem, o risco é ainda menor. Fique tranquilo: a equipe médica é renomada, o hospital é de referência nos Estados Unidos. Vai dar tudo certo”.

Do outro lado, porém, o inquietante hemisfério direito, responsável pelas interpretações emocionais. Carregado de sentimentos negativos, era ali onde morava o medo. Meu Deus, me tira daqui. Intuitivo e aleatório, era o lado direito do meu cérebro quem me dizia: “Isso pode dar merda, Allysson”.

O conflito me perseguiu até a sala de cirurgia, até onde havia lucidez. Numa sala branca, contei oito pessoas na equipe, enquanto era furado na mão direita e tinha os braços imobilizados. Olhei pra cima, vi três grandes spots de luz sobre mim. Pronto, o show vai começar. Apaguei, anestesiado.

Cinco horas depois, desperto ainda entubado. Confuso, desorientado e como se tivesse bebido sozinho umas cinco garrafas de vinho, eu lutava em vão contra o tubo de oxigênio que causava um desconforto terrível na garganta. Foram dois dias na UTI, 48 horas de alívio, esperança e gratidão, apesar das dores, dos desconfortos, da exaustão, da fraqueza, do sofrimento e da sofreguidão.

Passado o susto, ou melhor, o apavorante período que antecedeu a cirurgia, agradeço a Deus, aos profissionais brasileiros e americanos, ao John Muir e ao Medi-Cal. Estou vencendo diuturnamente a maior, mais complexa e assustadora batalha da minha vida. 

A recuperação pós-cirúrgica, que exige uma overdose de paciência e disciplina, deve durar de seis a oito semanas. A luta é grande, exaustiva, sofrida. Até sorrir dói. Mas é preciso sorrir. Porque só tenho a agradecer, a luta já é exitosa. É como canta Djavan: “Sorri. Quando a dor te torturar”. E é isso o que tenho feito. 

Motivos para sorrir não faltam. Renasci. Agradeço, especialmente, a Patrícia, Nina e Bia. Sou grato por tudo que elas têm feito por mim, pela dilatação – crucial e irreparável – de amor e dedicação. Imprescindíveis, neste e em todos os momentos da minha vida, elas são meus incansáveis anjos da guarda, diariamente – de manhã, à tarde, à noite e de madrugada.

Não posso deixar de agradecer também aos amigos que estão aqui nos Estados Unidos, sempre por perto, amizades aconchegantes como um dia frio na Califórnia e ensolaradas como a Flórida.

Agradeço às minhas famílias (Carvalho Teotonio e Bomfim dos Santos), meu duplo e grande porto-seguro. Grato aos amigos de toda hora, de longas datas, pra sempre, de longe apenas fisicamente, no Brasil. A todos, inclusive aos colegas e aos amigos dos amigos, muito obrigado pela força, pelo carinho, pelo apoio, pela energia, pelas vibrações e pelas orações. 

Com um verso de uma música minha, inédita e por acaso profética, escrita meses antes de descobrir a inadiável cirurgia, posso confirmar e cantar, agora sem medo: Viver é driblar as incertezas do coração.

(Allysson Teotonio)


Foto: Bia Teotonio (10/9/23)

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